sexta-feira, 28 de janeiro de 2005

As mãos mais bonitas do mundo

Aquelas portas grandes de madeira velha rangiam sempre que as empurrávamos.
Havia uma campaínha, mas nunca a usávamos.
Trepávamos pelas entranhas na cancela e escorregávamos a mão por baixo de um plástico que tapava a abertura.
A chave, ferrugenta e pesada, estava lá.
E saltávamos as escadas irregulares, uma a uma, para chegarmos a casa.
Aquela era a casa de todos, onde encontrávamos sempre um sorriso, um ralhete, uma malga de leite com cevada e torradas no forno a lenha, uma gemada com ovos que íamos buscar ao galinheiro no fundo do quintal...

E depois do lanche sentávamo-nos à tua beira.
Enquanto remendavas os coturnos, contavas as mesmas histórias de sempre.
Nós já sabíamos a que queríamos ouvir, e pedíamos: "a do lobo, conta a do lobo".
E tu cedias, sempre: "Era uma vez uma velha, muito velha..."
E nas partes emocionantes a tua voz transformava-se em vento seco, que nos provocava arrepios, e descrevias tudo tão perfeitamente que ouvíamos a velha a dizer "corre, corre cabacinha, corre, corre cabação...", falando com a cabaça que a levaria ao casamento da filha, e que a protegeria do lobo...

Ao fim da tarde as janelas davam para a rua e tinham um brilho especial, porque havia movimento lá fora.
As pessoas voltavam dos empregos, as crianças traziam quilos de livros nas mochilas cheias de brincadeiras e saber, os carros paravam junto à florista, ou junto ao talho...
E tu debruçavas-te, à espera.
Mesmo no Inverno, ficavas à espreita, à espera que chegasse alguém...
E havia sempre alguém a chegar, um prato que se punha a mais na mesa, a sopa como só tu sabias fazer: espessa, forte, de sabor volumoso e quente.

Tenho saudades da tua sopa.
Agora somos nós que te damos a nossa, com paciência, como também já fizeste...
Tento não pensar no tempo, o futuro traz-me lágrimas aos olhos...
E aperto com mais força as tuas mãos que, apesar de anos e anos de trabalho, continuam bonitas...
Pergunto-te quem sou e tu sorris, envergonhada, porque a memória te prega partidas.
Digo-te: "Chamo-me como tu!"
E tu sorris de novo e dizes o nosso nome...

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