sábado, 23 de julho de 2005

Mãos cheias



"Fabrico um elefante de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira tirado a velhos móveis talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão, de paina, de doçura.

A cola vai fixar suas orelhas pensas.
A tromba se enovela, é a parte mais feliz de sua arquitetura.

Mas há também as presas, dessa matéria pura que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza a espojar-se nos circos sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos, onde se deposita a parte do elefante mais fluida e permanente, alheia a toda fraude.

Eis o meu pobre elefante pronto para sair à procura de amigos num mundo enfastiado que já não crê em bichos e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente e frágil, que se abana e move lentamente a pele costurada onde há flores de pano e nuvens, alusões a um mundo mais poético onde o amor reagrupa as formas naturais.

Vai o meu elefante pela rua povoada, mas não o querem ver nem mesmo para rir da cauda que ameaça deixá-lo ir sozinho.

É todo graça, embora as pernas não ajudem e seu ventre balofo se arrisque a desabar ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância sua mínima vida, e não há cidade alma que se disponha a recolher em si desse corpo sensível a fugitiva imagem, o passo desastrado mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres e situações patéticas, de encontros ao luar no mais profundo oceano, sob a raiz das árvores ou no seio das conchas, de luzes que não cegam e brilham através dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai sem esmagar as plantas no campo de batalha, à procura de sítios, segredos, episódios não contados em livro, de que apenas o vento, as folhas, a formiga reconhecem o talhe, mas que os homens ignoram, pois só ousam mostrar-se sob a paz das cortinas à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite volta meu elefante, mas volta fatigado, as patas vacilantes se desmancham no pó.
Ele não encontrou o de que carecia, o de que carecemos, eu e meu elefante, em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa, caiu-lhe o vasto engenho como simples papel.
A cola se dissolve e todo o seu conteúdo de perdão, de carícia, de pluma, de algodão, jorra sobre o tapete, qual muito desmontado.

Amanhã recomeço."

O Elefante, Carlos Drummond de Andrade

Às vezes, quando se sai à procura, volta-se de mãos e coração cheios.
Obrigada por tudo o que não cabe em palavras e que no conjunto faz a nossa amizade...

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