sexta-feira, 18 de junho de 2004

"Acordei com o barulho das luzes que se perseguem numa luta constante de chamada de atenção.
Lá em baixo há uma massa de carne e sentidos que se torna difícil de conter.
E a música já não dá espaço para nada.
Sentes o corpo pesado como chumbo para um espírito leve, já bêbado disso que nem sabes que te puseram no copo.
E só aí te libertas.
Como quando éramos balão sem ar, cheio de tão vazio que não se aguentou em lado algum.
Lembras-te, de quando o sol era mais forte do que nós e se deitava às escuras para nos iluminar com a sua luz de dia novo e alegre? Vendo bem, hoje os covardes somos nós, que fugimos da lucidez, buscando paz nas orgias de fumo constante, quando a lua fria é o nosso único calor.
Lembras-te?
E correr era apenas o despejar da alegria inesperada de quem tem o mundo pelas costas e ele nos sabe a asas, e não a peso...
Aí éramos felizes, com os pés descalços húmidos de embriaguês na relva verde que cai com o Verão.
E hoje não. Hoje a felicidade dói de tanta que é.
A bebedeira deixou de ser constante, e de cada vez que vem é como uma onda de pôr-do-sol com mar revolto, sem nuvens de tempestade. O som rouco do bater nas rochas com gritos de gaivotas desesperadas e uma loucura de cores quentes infinitas, que percorrem todos os tons existentes entre o vermelho do sol e o negro do céu novo, ainda sem lua ou estrelas.
E a música soa a gritos de vale a pena viver.
No entanto tenho-te à minha frente, e estou um degrau acima.
No meio de todo o conflito humano há o teu pescoço moreno cortado pelo fio preto. E significa apenas um nada que queima cá dentro como tu nunca queimarás.
Há um balcão sobre a pista de onde se deve ver bem: o grandioso espectáculo que dá vertigens de medo e desejo. A combinação perfeita para a atracção. Já pensaste? Será que achavas que ia ter este fim?
E ainda nem sequer começou.
E de lá de cima vê-se com uma nitidez incrível. Quase de olhos, e não de coração.
Há um exército de formigas que percorrem todos os músculos que comandas e não comandas e surge uma vontade rouca de fugir.
E no entanto há qualquer coisa de tão diferente na maneira de falar e de mexer e... sei lá!
O medo sobrepõe-se mesmo à vontade de fugir e aí surge a vertigem.
E lá em baixo é perfeito.
A atracção para o vazio, mais que do que tudo.
Lá em baixo.
A queda para o desconhecido.
Hipnótica.
Perfeita para uma noite como esta.
E lá fora está frio...
Será que alguma vez vamos sair daqui?
Hoje não.
A memória falha como um copo sem fundo incapaz de reter todo esse líquido alegria.
Resta um pouco de prazer nos olhos.
Tudo de olhos nos olhos, como se não houvesse um pouco de alma no mundo.
Mas a vida é incrível...
A ressaca sabe mais a álcool do que a própria bebedeira e tens vontade de mais. De muito mais disso, o que quer que seja, que te deixa lívido de viver, de algo tão forte que nem consegues sentir.
E afinal.....
Tudo vai para além dos limites do imaginável.
Quando falamos em sentimentos tudo está muito mais dorido. Sensível ao novo esforço que atinge muito mais forte do que o primeiro.
Lá fora já cai o pano da noite.
Um copo vazio resta no mar que vai e vem devagar, passada a tormenta. Resta no mar... E no mar resta a calma de algo incontrolável, que não tem palavras, e está longe. Mas tão longe da indiferença!
Acreditas em amor à primeira vista? Eu não.
Mas há olhos de todas as cores, como o pôr-do-sol.
E desde a primeira vez, sempre que a areia se abate sobre os meus pés ainda verdes de relva, o céu está imundo de cores. E é tão difícil largá-lo como... como a ressaca inacabada, que é a maior bebedeira. Da minha vida.
Sabe a perfume quente, a cerveja e a pasta dos dentes.
E a tudo o resto, que a luz, e a música e a quarta-feira à noite. Inacabada...

O dia amanheceu curto, da noite violenta.
Há um corpo a boiar no mar, e através do seu vidro cristalizado flutua um copo de verde.
E o mar gagueja ondas atrás de ondas, indiferente a todo o calor que da noite para o dia se transformou em sol."
AS; 01ABR1994

Isto escrevi eu quando quase me apaixonei por um colega da minha irmã mais velha, lindo, moreno de olhos verdes, que gaguejava com um charme irresistível quando estava nervoso... Usava um perfume quente, que me deixava completamente tonta...
Como é possível terem passado dez anos?
Se na altura eu era uma miúda, o que serei agora????

2 comentários:

Anónimo disse...

Outra miúda?
Miguel Cardina | Email | Homepage | 20.06.04 - 2:22 am | #

muska disse...

Provavelmente... Acho que nunca vou crescer...
Muska | Email | Homepage | 20.06.04 - 3:49 am | #